O médico e pesquisador Wanderlei Piganti analisa o desmate químico de 80 mil hectares em MT
Por: ANDRELINA BRAZ (DA REDAÇÃO do MIDIANEWS)
O desmate químico de 80 mil hectares de uma fazenda em Barão de Melgaço, no Pantanal, que segundo a Polícia Civil foi feito pelo pecuarista Claudecy Oliveira Lemes, poderá ter consequências desastrosas, como aumento de casos de câncer e doenças endócrinas e neurológicas na população local.
É o que afirma o médico e pesquisador Wanderlei Pignati, integrante do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador da UFMT (Neast), da Universidade Federal de Mato Grosso.
“O agrotóxico contendo a substância 2,4-D, acontaminou toda a água dos córregos e pode contaminar os peixes que vivem lá. Considerando que nessa região moram muitos ribeirinhos, provavelmente, vai ter um aumento de câncer, de má formação, de doenças endócrinas e doenças neurológicas ali”.
“Vai demorar de 20 a 30 anos para recuperar… Na verdade, acho que é irrecuperável porque tudo aquilo é vivo, todas as espécies de árvores que havia ali, todos os animais que havia ali, todos os peixes, todos os répteis.”, disse o especialisa, em entrevista ao MidiaNews em sua casa, nesta semana.
“O produto atua na questão hormonal, causa câncer e má formação do feto, tanto para os que moram dentro da área dos 80 mil hectares”
O caso veio à tona na semana passada, quando o programa Fantástico, da Rede Globo, noticiou o megadesmate químico e a multa de R$ 5,2 bilhões entre multas e valoração dos danos.
“Quanto ao fazendeiro, ele tem que pagar a multa. Isso tem que acontecer, talvez com essas 11 fazendas. E se caso acontecer outra situação similar, que outras fazendas também sejam interditadas“, disse.
Confira os principais trechos da entrevista
MidiaNews – Como o senhor classificaria esse episódio de desmate químico ocorrido no Pantanal?
Wanderlei Pignati – Considero um dos crimes mais graves, ambiental social e humano do Brasil dos últimos 3 anos. Porque 80 mil hectares são 6% da área norte do Pantanal, desmatado com produto químico. Esses produtos químicos são herbicidas altamente tóxicos, tanto para o humano como para o meio ambiente.
Então esse é um crime que afeta tanto as plantas, os animais, os humanos… como também contamina a água, contamina o ar, contamina a chuva. Trata-se de um agrotóxico tóxico bastante estável. Neste caso o fazendeiro passou de avião, o que é proibido, já que o vento leva o produto químico facilmente, podendo viajar a dez, vinte quilômetros de distância e contaminar outras áreas.
MidiaNews – Diante desse acontecimento grave no Pantanal, o que precisa ser feito para preservar o futuro do bioma?
Wanderlei Piganti – Acho que o que a gente tem que fazer agora é uma campanha em relação aos 80 mil hectares que estão desmatados, e tentar fazer uma recuperação. Vai demorar de 20 a 30 anos para recuperar. Porque se você colocar todas as espécies de árvores que havia ali, todos os animais que havia ali, todos os peixes, todos os répteis… E na verdade, acho que é irrecuperável porque tudo aquilo é vivo.
Quanto ao fazendeiro, ele tem que pagar a multa. Isso tem que acontecer, talvez com essas 11 fazendas. E se caso acontecer outra situação similar, que outras fazendas também sejam interditadas. Temos que pressionar para que isso não aconteça [de novo]. A gente sabe que os grandes [produtores] não pagam a maioria das multas. Eles recorrem, recorrem e não pagam.
MidiaNews – E na sua visão, como este caso afeta a imagem do Estado de Mato Grosso?
Wanderlei Piganti – Esse caso está saindo internacionalmente. É uma vergonha para o Brasil e uma vergonha para Mato Grosso. Provavelmente, esse caso vai afetar até as exportações do Estado.
MidiaNews – Um dos componentes usados pelo fazendeiro foi o 2,4-D. Qual o risco deles para a saúde da população?
Wandelei Piganti – Sobre o 2,4-D especificamente, os estudos começam lá na guerra do Vietnã, já que é um dos componentes do agente laranja, junto com o 3,5-T. O 3,5-T foi retirado do mercado porque é extremamente tóxico, mas ficou o 2,4-D, que é altamente tóxico.
Os estudos apontam que o 2,4-D é cancerígeno e teratogênico (causa má formação no DNA do feto), além de ser desregulador endócrino, ou seja, faz uma bagunça no nosso sistema endócrino, diminui a imunidade e causa distúrbios neurológicos, como por exemplo, a má formação e a espinha bífida. O Estado de Mato Grosso, inclusive, é o único do Brasil que tem uma associação de pacientes com espinha bífida.
O fazendeiro tem que pagar a multa. Isso tem que acontecer com essas 11 fazendas. E se caso acontecer outra situação similar, que outras fazendas também sejam interditadas
MidiaNews – Se por acaso aquela área virar pastagem, existe risco de o gado ser contaminado, colocando em risco a saúde de quem consome a carne?
Wanderlei Piganti – O 2,4-D é decomposto no solo no período de 150 a 200 dias. Lógico que nesse período ele destruiu o mato e árvores originais, os pequenos animais e contaminou as águas que alguém pode ter bebido. E isso pode provocar doenças crônicas. Mas como ele é estável, se a quantidade de agrotóxico se deslocar com o vento na deriva, ele pode atingir pastagem que tem bois. Estes bois vão consumir a pastagem atingida e, então, terão a carne e o leite contaminados.
MidiaNews – Não só o 2,4-D, mas outros agrotóxicos são proibidos na União Europeia e comercializados livremente no Brasil. O senhor diria que a legislação brasileira facilita a compra e consequentemente a prática de crimes ambientais como esse no Pantanal?
Wanderlei Piganti – Sim, porque não é proibido aqui. Tentou-se proibir em 2014. Temos a Lei Federal de Agrotóxico, temos uma nova lei que não foi regulamentada e temos uma Lei Estadual do Agrotóxico, regulamentada em 2009.
Um dos intens da estudal é em relação à distância. Nela seriam proibidas a pulverização e a aplicação de agrotóxicos a 300 metros de residências, criação de animais e corregos de abastecimento.
Inclusive, em 2013, o ex-governador Silval Barbosa, pressionado pelo agronegócio, baixou essa distância para 90 metros. Os próprios fazendeiros querem ampliar o risco à saúde colocando 90 metros. A maioria não respeitava os 300, não respeita os 90 metros e não respeita o Pantanal.
MidiaNews – Que riscos os moradores daquela região correm em razão do despejo de agrotóxico no ar?
Wanderlei Pignati – Os estudos mostram que isso pode afetar toda a comunidade que mora ali nesses 80 mil hectares.
Não é só comunidade humana, é dos animais, peixes, répteis pequenos, enfim… Ele é tóxico e mata. Em outros animais, também atua no sistema hormonal.
Dentro desses animais está o homem. O produto atua na questão hormonal, causa câncer e má formação do feto, tanto para os que moram dentro da área dos 80 mil hectares, quanto dos que moram no entorno, porque contaminou toda a água dos córregos e pode contaminar os peixes que vivem lá.
Considerando que nessa região moram muitos ribeirinhos, provavelmente vai ter um aumento de câncer, de má formação, de doenças endócrinas e doenças neurológicas ali.
MidiaNews – Levando em consideração que Mato Grosso apresenta um alto grau de subnotificação de intoxicação por agrotóxico, a população de Barão de Melgaço já pode estar sendo afetada por essa ação sem que haja dados sobre isso?
Wandelei Pignati – A subnotificação é muito grande em Mato Grosso. Porque o serviço de saúde não está preparado para discutir, principalmente as doenças crônicas relacionadas ao agrotóxico e as intoxicações agudas. E, então, fala-se que é vírus, diarreia por problema alimentar e se esquece de perguntar se a pessoa mora do lado de uma plantação de soja, de milho ou de algodão.
Sobre o 2,4-D especificamente, os estudos começam lá na guerra do Vietnã, já que é um dos componentes do “agente laranja”
Porque o vento leva. Ou seja, vai haver contaminação e não vai haver a notificação. Ou vai haver uma notificação errada. Mas além disso, outro fator que contribui para a subnotificação [a nível estadual], é a pressão do agronegócio para não notificar, já que os prefeitos são ligados ao setor e esses dados podem prejudicar as exportações.
MidiaNews – E quando o senhor publicou seus estudos houve também críticas contra seu trabalho e do grupo de pesquisa do Neast. Como vocês fazem para rebater essas críticas?
Wanderlei Pignati – O agronegócio tem uma pressão para produzir e uma ganância muito grande. Então, a gente recebe pressão [do agro] e das indústrias, que são comprometidas para falar que aquele agrotóxico não é cancerígeno, contrariando as pesquisas dos pesquisadores nacionais e internacionais, que falam e fazem estudos comprovando que é. E as indústrias não mostram como fizeram as pesquisas, não mostram a metodologia. Nós mostramos a nossa metodologia.
Em 2010 a gente apresentou um estudo inédito no Brasil que teve repercussão internacional e falava de contaminação do leite materno. E olha que pesquisamos apenas 20 tipos de agrotóxicos. Hoje você pode fazer por multirresíduo e analisar 200 tipos de agrotóxicos. Então eu sempre digo: analise hoje, com a metodologia de vocês, analise hoje o leite materno para ver quantos tipos de agrotóxicos são encontrados. Porque [o agrotóxico] vai prejudicar o feto e vai prejudicar a criança que vai se amamentar do leite materno.
MidiaNews – Entre as suas pesquisas sobre agrotóxico e a influência na saúde humana, quais são os seus principais achados?
Wanderlei Piganti – Os principais achados é que as quatro regiões mais produtoras do Estado é onde há a maior incidência de câncer infanto-juvenil, má formação, distúrbios neurológicos, endócrino e suicídio. Analisamos a região de Sapezal e Campo Novo dos Parecis. E as águas lá estão contaminadas, o ar contaminado, até mesmo dentro das escolas.
Mas também temos estudos no Pantanal que mostram a contaminação das águas com o 2,4-D, o glifosato e a atrazina. Nessa região existem comunidades ribeirinhas e comunidade quilombola que estão sendo afetadas por essas águas. Também temos estudos sobre contaminação das águas no Parque Nacional do Xingu, porque todas as nascentes do Xingu nascem dentro de plantação de soja, de milho, de algodão. Inclusive houve um aumento naquela região de doenças relacionadas a esse agrotóxico.
MidiaNews – É possível conciliar a produção agrícola com a proteção do meio ambiente?
Wanderlei Piganti – Você tem toda uma cultura de que não dá para produzir sem agrotóxicos, mas não é verdade. Hoje existem várias metodologias como a agroecologia e a produção de orgânicos. Eu visitei uma fazenda lá em Sertãozinho (SP), de 17 mil hectares e que está há mais de 20 anos sem agrotóxico e fertilizante químico. Hoje eles são os maiores produtores de açúcar e álcool orgânico do Mundo. E a produtividade de toneladas de cana lá é muito maior do que a de outras fazendas, porque o agrotóxico acaba esterelizando o solo. Ele mata fungo e bactéria. Então você vai precisar usar mais veneno e mais fertilizante químico para manter a produtividade.
Fonte: MidiaNews
Texto retirado do site www.midianews.com.br